Nos últimos anos temos assistido um pouco por toda a sociedade portuguesa ao renascimento do ideal monárquico, que culminou com várias manifestações a propósito do centenário da República e com a discussão latente sobre as vantagens e desvantagens da República e da Monarquia como formas de governo. O assunto, obviamente, é interessante, mas a respectiva discussão tem estado deslocada do essencial da questão e – creio – por detrás dela está mais uma forma de desresponsabilização colectiva.
A primeira grande crítica que se faz à República é que a sua instauração se fez de uma forma violenta e sanguinária. Esta crítica é fundamentalmente fútil, uma vez que é regra (e raras são as excepções) que as grandes mudanças sociais e políticas se façam precisamente de forma violenta e sanguinária. E a mudança de uma sociedade monárquica para uma sociedade republicana é uma das grandes mudanças sociais e políticas que atravessou todas as nações do ocidente, quase sempre com violência e sangue.
A outra grande crítica que se faz à nossa centenária República é o seu rotundo e evidente falhanço em corresponder aos anseios de desenvolvimento do povo português. Olhando para trás, encontramo-nos hoje numa situação colectiva assustadoramente parecida com aquela que se viveu na instável primeira República. Como se, 100 anos depois, tivéssemos dado uma volta de 360 graus para voltarmos ao ponto de partida. Isso em parte é verdade. Mas, tão ou mais assustadora que a análise da situação social e política actual por paralelo à de há um século atrás, é a releitura do diagnóstico do “ser português” que vários anos antes já tinha sido feita pela “Geração de 70”. O que essa releitura revela é um povo cujos traços de personalidade colectiva pouco mudaram em 100 anos. Os nossos defeitos colectivos são hoje os mesmos que eram há um século e são aqueles que permitiram que aceitássemos impavidamente que nos guiassem como um dócil rebanho na maior parte destes últimos 100 anos (durante toda a ditadura, obviamente, mas também no tempo da “Europa”, com raríssimas excepções na primeira república, no PREC e, talvez, nos anos de ouro cavaquistas).
O problema não está na República. Porque o que verdadeira e essencialmente distingue a República da Monarquia – e aqui chegamos ao centro do debate – é o “peso” que cada um dos regimes coloca sobre os ombros dos cidadãos. Numa Monarquia o poder emana de Deus e é atribuído divinamente a um cidadão. Por isso é que existe uma linha sucessória. Numa República, o poder emana do Povo e é atribuído aos seus representantes durante o período de tempo do mandato e segundo esse mandato. Por isso, numa Monarquia, os cidadãos são essencialmente irresponsáveis perante o caminho da sociedade (compete ao Rei decidir), enquanto que numa República os cidadãos são – todos – solidariamente responsáveis pelas escolhas feitas (se não o forem, a consequência lógica é a guerra civil ou a formação de partidos). A República é portanto – logicamente – um estágio evolutivo superior da organização colectiva da espécie humana. Regressar da República à Monarquia seria um retrocesso histórico contrário a toda a evolução recente das sociedades humanas.
Claro que – dirão os apoiantes da Monarquia – o que se pretende não é o regresso às formas tradicionais de Monarquia, mas sim a uma Monarquia constitucional, com partidos, eleições e representantes temporalmente mandatados. Uma Monarquia “moderna”. Esse é outro erro de perspectiva subjacente a este debate. Desde logo, porque uma “monarquia constitucional” já é em si mesma uma conjugação de termos difícil de conceber. De onde emana a legitimidade de poder nesse caso? Do “monarca” ou da “constituição”? “De ambos”, naturalmente, só é uma resposta aceitável, enquanto eles não forem contraditórios…
Depois, porque uma Monarquia em que todos os representantes executivos são eleitos excepto o Rei não é verdadeiramente uma Monarquia. É uma República com um cargo de chefe de Estado não electivo. O que significa que, na realidade, não existem verdadeiras monarquias no mundo ocidental. O que bate certo com a já referida evolução das sociedades humanas: não existem monarquias no mundo ocidental porque é uma fatalidade da evolução histórica que não existam monarquias no mundo ocidental. É tão simples quanto isso. E é por isso que a proposta de regresso à Monarquia é tão… irracional.
Aliás, se me é permitia a opinião (republicana), as monarquias que conhecemos no mundo ocidental (nomeadamente na Europa), fazem muito pouco jus à nobreza (a palavra adequa-se particularmente neste contexto) tradicional da Monarquia. Escândalos nas revistas do social, plebeus em matrimónios reais, divórcios… nada disto está à altura do legado histórico da Monarquia, o qual, até um republicano o admite, nos deu bastantes exemplos de grandeza. Aliás, é disso também que se faz a nossa história! Essas tristes figuras das monarquias europeias não são epifenómenos; são, precisamente, manifestações de como a instituição monárquica está desfasada do mundo moderno. Toleram-se porque na verdade pouco importam. Quem decide – tal como deve ser – são os cidadãos através dos seus representantes eleitos.
Os partidários da causa monárquica em Portugal podem dividir-se em dois grandes grupos. Um deles é o dos intelectuais que, à maneira de Vasco Pulido Valente, encontram no advogar da Monarquia uma forma de apresentarem ideias “originais”, diferentes das dos outros intelectuais. O outro é o dos cidadãos comuns que colocam uma bandeira azul e branca no carro ou mudam a sua imagem de perfil no Facebook em dia de centenário da República; esses fazem-no porque é chique, tem classe e a bandeira até é bonita. Mas isso não tem nada a ver com a Monarquia.
O problema é que uns e outros procuram externamente as respostas que deviam procurar dentro de si próprios, colectivamente falando. Não foi a República que nos colocou onde nós estamos. Fomos nós que nos colocámos lá e não há monarca que nos salve! Temos que ser nós próprios a fazê-lo. Dificilmente poderia fechar com uma afirmação mais republicana!