Paulo Portas e Pedro Passos Coelho: um instantâneo.
(via @poingg, em pic.twitter.com/qqdt0UZFd0)
Isto não é um convite; é uma proposta indecente!
Talvez seja um pouco tarde para Durão Barroso propor uma federação de estados europeus. Essa ideia devia ter sido proposta há vários anos e devia ter sido sancionada pelos povos europeus, algo que eles nunca quiseram fazer. Todos sem excepção. Com os resultados que agora se vêem.
Além disso, uma federação de estados europeus – com sede “real” em Berlim, naturalmente – não seria incompatível com o único propósito que se consegue perceber por detrás do projecto europeu da Alemanha. A Alemanha, como qualquer potência de média dimensão, está assustada com a emergência de novos pólos económicos no mundo e decidiu que vai recuperar a competitividade económica europeia baixando os salários das zonas pobres do sul da Europa. Uma espécie de “uma união, várias economias”.
Durante alguns anos, a inteligência económica colectiva alemã achou que podia gerir o “problema chinês” fornecendo tecnologia ao gigante adormecido para que ele continuasse a operar as suas fabricas de mão-de-obra barata. Mas os chineses não são parvos – nem têm vocação para capachos – e decidiram que eram eles que mandavam. Nesse momento, a Alemanha achou que a única alternativa era fazer dos gregos, portugueses, irlandeses, eventualmente espanhóis e italianos, juntamente com alguns povos de leste, uma espécie de “chineses da Europa”. Tanto quanto se consegue perceber, é esse o projecto europeu da Alemanha.
E é um projecto nobre! Preservar a Europa é um projecto nobre! E preservar a Europa é hoje – olhe-se como se olhe – preservar a sua competitividade na economia global de múltiplos pólos. É isso que Alemanha quer e isso é bom para a Europa. O problema é que a receita escolhida pode não resultar. A crise europeia pode ser mais profunda do que parece. Pode acontecer que não seja apenas uma crise financeira e se calhar também não é só económica. A crise europeia pode ser civilizacional e ter chegado com meio século de atraso.
Primeiro que tudo, na Europa – obviamente! – não há uma crise grega, nem uma crise portuguesa, nem espanhola, irlandesa ou italiana. Por uma razão muito simples: é que na realidade, na Europa, não existe uma economia grega, portuguesa, espanhola ou italiana. Há apenas a economia europeia. Não há muitos espaços económicos no mundo mais integrados e unificados que o espaço europeu. Quanto mais não seja por causa desse detalhe fundamental que é a moeda única. A Europa está mais integrada, a muitos níveis, que a federação norte-americana, e nem sequer é uma federação! Portanto, paremos a conversa quando alguém falar da crise portuguesa ou da economia portuguesa. Hoje, em 2012, nenhuma dessas duas coisas existe.
A decadência europeia
A Europa dominou o mundo durante séculos. Desde a idade media, passando pelos descobrimentos e até às duas guerras mundiais. Que diabo!, a Europa até “se exportou” para outros continentes antes de se envolver em duas guerras civis europeias sucessivas. Na altura, a Europa era podre de rica – uso a palavra “podre” propositadamente – e muito mais “integrada” do que normalmente percebemos. Por isso é que se envolveu em tantas guerras fratricidas. As guerras são uma espécie de jogos florais das sociedades modernas. São tanto um luxo como os torneios medievais o eram para as sociedades de então. Enquanto império expansionista, a Europa acabou algures entre a primeira e a segunda guerras mundiais. As guerras em que se envolveu – e em que envolveu o mundo – foram o seu canto do cisne.
Depois da 2ª guerra mundial o mundo ficou dividido em dois blocos geopoliticos com capacidade de aniquilação mútua. E isso congelou a história durante 50 anos (aliás, houve quem confundisse o fim do congelamento da história com o fim da história). Nessa época nada floresceu porque nada podia florescer fora do controlo de Washington ou de Moscovo. Havia muito países no mundo com vontade de crescer e com a “energia vital” para o fazerem. Mas, obviamente, nenhum foi “autorizado”. Durante esses 50 anos foram os EUA que “seguraram” a Europa e os seus padrões de vida. Não porque gostassem dela, mas porque precisavam de a ter ali, naquele lugar, como tampão à ameaça russa.
Quando o muro de Berlim caiu e os EUA ganharam a guerra fria, o mundo descongelou e a globalização seguiu o seu curso natural. E, por “seu curso natural” entende-se isto: as nações com condições naturais (recursos) e energia colectiva (vontade) começaram a crescer – ou seja, a multiplicar a sua riqueza – mais do que qualquer velha potência do mundo anterior à bipolarização (Alemanha, França, Inglaterra, EUA, etc).
A energia colectiva necessária para um povo prosperar é certamente algo difícil de definir e delimitar do ponto de vista teórico. Mas há um elemento que de certeza faz parte do “pacote”: uma população jovem e ambiciosa. Isso é – entre outras coisas – aquilo que existe na China, no Brasil, na Índia, na África do Sul, até na Rússia. Mas não existe na Alemanha. E também não existe numa hipotética Europa federada com “trabalho barato” no sul da Europa. Dito de outro modo: podemos chamar a esta crise europeia muitas coisas – financeira, política, económica, etc – mas na verdade ela é civilizacional e não é uma crise; é a continuação de um processo de decadência que já se tinha iniciado muito antes da Guerra Fria. A Europa está a morrer. E está a morrer porque a sua população está velha e acomodada. Não são só os portugueses, por exemplo, que estão acomodados aos benefícios sociais – entre outros – que agora lhes querem retirar. Os alemães também lhes estão acomodados. E os franceses, e os italianos, etc, etc.
Globalizar o humanismo!
Precisamos perceber que o “problema europeu” não é uma crise financeira, económica ou política, para interiorizarmos que a solução tem que ser – se-lo-á inevitavelmente – historicamente muito relevante, vasta nas suas envolvências e consequências, e criativa, no sentido de ser algo que quase de certeza neste momento não estamos a ver. A mim parece-me que, por complexa que seja a dita “crise”, a solução para a decadência histórica da Europa passa provavelmente por esta medida muito simples: abrir incondicionalmente todas as suas fronteiras!
Há milhões de jovens por esse mundo fora ansiosos por construir uma vida nova e com a energia para enfrentarem os obstáculos que se levantem ao seu caminho. Que raio!, há pessoas que se metem em balsas que não sabem se alguma vez chegarão a algum destino para irem à procura de uma vida melhor. Isso – essa coragem, essa vontade de melhorar – é exactamente o que a Europa não tem e precisa! Não será certamente a única, mas é decerto uma das condições para evitar a decadência europeia. Por inverosímil que possa parecer, isso é exactamente o que os europeus têm que perceber. E é inverosímil porque, para que tal coisa fosse possível, era necessário que os europeus – aqueles que cá estão – tivessem a coragem histórica de aceitar os imigrantes como seus iguais. O que significa partilhar com eles os seus recursos. E talvez hoje seja a época de testar uma solução historicamente original como esta. Num mundo globalizado talvez seja hora de suprimir as diferenças e aceitar o “outro” como parte de nós. Depois da globalização dos fluxos financeiros, do comércio e da distribuição de matérias primas, talvez esteja na altura de globalizar o humanismo. E “globalizar o humanismo” significa não apenas exigir que os nossos congéneres que se manifestam Bagdade, Teerão ou Pequim tenham os mesmos direitos cívicos que nós, mas também aceitá-los como iguais ao nosso lado, sejam eles argelinos, sudaneses, brasileiros, turcos, romenos ou de qualquer outra proveniência.
Talvez esta seja a oportunidade histórica de a Europa voltar a ser vanguardista. Para isso, é preciso preencher muitas condições, mas a primeira delas é que os europeus consigam ser menos mesquinhos do que foram há uns anos quando outros políticos europeus antes de Barroso falavam de uma hipotética federação europeia…
A propósito da crise grega, voltei a ouvir uma expressão que já não ouvia há anos: “a esquerda democrática”. O tempo é outro e o contexto é certamente diferente, mas a expressão – curiosamente – é a mesma.
Lembro-me bem de qual era o sentido com que era usada há 20 ou 30 anos em Portugal. Falava-se da “esquerda democrática” por oposição a uma esquerda que implicitamente (implicitamente na expressão e explicitamente no discurso) se considerava “não democrática”. Claro que sempre me fez confusão a forma como esse “nós-vs.-eles” impunha uma definição de democracia. Como se esta fosse uma palavra monossémica, quando na realidade é uma da palavras mais polissémicas que existe. Isso sempre me pareceu injusto e intelectualmente abusivo, mesmo quando a acepção de “democracia” era aquela com que eu concordava. Não há uma “democracia”; há vários tipos de “democracia” porque há muitas acepções diferentes da palavra “democracia”.
Curiosamente, a expressão “esquerda democrática” quase desapareceu do discurso político durante os últimos 15 a 20 anos. De certa forma porque o discurso político em Portugal interiorizou que os partidos à esquerda do PS , do PCP “para lá”, não contavam para aquilo que muitas vezes se chamava “o arco da governação” (que incluía, naturalmente, a tal “esquerda democrática”). De certa forma gerou-se um consenso, a que os próprios certamente chamariam “consenso democrático” (lá está!), sobre o modelo de sociedade que estava a ser construído e no qual as regras do “jogo democrático” (algumas regras formais mas muitas informais) desempenhavam um papel conciliador e unificador. Durante anos discutimos a política dentro do contexto desse consenso e raramente saindo dele.
Por isso é que torna irónico que a expressão regresse agora a propósito da situação na Grécia e das aritméticas eleitorais dela resultantes. Já ouvi a expressão “esquerda democrática” em notícias , comentários e análises. Ainda não percebi muito bem quais são os partidos da esquerda grega que estão dentro ou fora da chamada “esquerda democrática”. Mas já deu para perceber que, subitamente, a esquerda “não democrática” (o que quer que seja que isso significa; é um vocábulo pelo menos tão polissémico como o seu oposto…) é ou pode ser maioritária. Ou pelo menos tão numerosa ao ponto de impedir o tal consenso que aparentemente vigorava lá como cá. E isso é uma situação nova. De repente o consenso dentro do qual a sociedade política grega evoluiu nas últimas décadas quebrou-se ao ponto de voltar a ser necessário usar a dicotomia “esquerda democrática”/”não democrática”.
E isso, em si mesmo, pode ser um indicador muito interessante. Pode significar – é apenas uma hipótese! – que o arco temporal que medeia entre esse tempo e o que hoje vivemos se fechou. E que o processo de construção social que então se iniciou, com participação de todas as forças políticas (não apenas partidos…) da “área democrática”, falhou! Falhou, ao ponto de voltar a ser necessário contar com forças consideradas “não democráticas” e portanto não passíveis de consensos.
Deste ponto de vista, Grécia e Portugal (como de resto outros países da periferia europeia) têm percursos históricos muito semelhantes. E o que isto pode significar, no fundo, é que o movimento histórico profundo de aproximação ao norte da Europa (por aglutinação) terá falhado para os dois países (e outros em situação semelhante). E que o sonho de uma Europa homogénea terá ruído definitivamente. E isso é uma má notícia. Porque uma Europa desunida é uma Europa mais fraca. Hoje ainda e muito mais do que há 50 anos atrás.
“Povo sem medo do mar não tem medo de lutar”
A frase – de autor desconhecido -serviu a um dos cartazes de apoio à recente greve geral de 1 de Maio. A construção gráfica é muito feliz: veicula uma ideia clara, com muito “lastro” histórico e um apelo claro à acção.
E, de facto, quando pensamos na aventura marítima de 1500, não podemos deixar de nos assombrar com a aparente coragem com que os navegadores portugueses de então se lançavam rumo ao desconhecido, não em sentido figurado mas literalmente real. À primeira vista pareceria haver aqui um fundo de coragem nacional a que o cartaz apela para resolver os problemas do presente. Mas esse pode ser, afinal um dos grades erros de percepção da nossa própria história.
A reflexão resultou – curiosamente! – da polémica sobre essa “espécie cultural em vias de extinção” que são as touradas e da análise das semelhanças e diferenças entre a Festa Brava em Portugal e em Espanha. Recordo-me que, ainda na faculdade, e inspirados pelo trabalho do professor Jorge Dias (e dos seus “Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa“) fizemos um trabalho sobre touradas em que entrevistámos, entre outros, o matador Diamantino Vizeu.
Obviamente falámos sobre as características do toureio a pé espanhol face ao toureio a cavalo português. A determinado ponto da conversa eu disse qualquer coisa como: “sim, mas os forcados, por exemplo, revelam uma enorme coragem ao enfrentarem o touro como o fazem!”
“Coragem nenhuma!” – retorquiu ele – “Eles são é completamente loucos! E isso não é coragem, porque a coragem implica a consciência perfeita do perigo que se corre!” Referia-se, obviamente, ao toureio a pé, em que o toureiro domina o touro ao seu nível, quase olhando-o olhos nos olhos, em pontas, um-para-um.
Esta ideia anda comigo desde então e volta-não-volta emerge a propósito deste ou daquele assunto. Agora foi a propósito da crise e da nossa atitude colectiva perante ela.
Aliás é curioso notar as características peculiares do toureio português – com nobres cavaleiros dominando a “festa” do alto da sua montada e os pobres “moços de forcados”, assim são adequadamente chamados, autorizados a dar uma volta com o “nobre” quando a coisa corre bem – por oposição ao toureio espanhol, com os nobres lá em baixo a lutarem pela vida e a dominarem a besta. É toda uma parábola que parece reflectir a história de ambos os países e também – é aqui que eu quero chegar – as suas diferentes atitudes perante a encruzilhada histórica em que ambos se encontram.
Ou seja: é bem possível que a tão famosa coragem portuguesa – aquela que nos levou a embarcar em 1500 e ainda nos leva a enfrentar uma besta de 500 quilos – não seja afinal mais do que inocente inconsciência. E que os nossos nobres, na vida como na tourada, se mantenham higienicamente distantes de maneira a não sujarem os seus punhos de renda.
O cartaz era bom. Mas se calhar partiu de uma premissa completamente errada. Isso é, pelo menos, aquilo que a realidade vai dizendo…
Camilo Lourenço é um jornalista inteligente. É inteligente quando fala de economia, mas também é inteligente quando fala de política. A inteligência continua lá; o que muda é só o tema em que ela se expressa.
Na sua crónica de hoje no Negócios Online introduz o interessante conceito da (necessidade da) “modernização ideológica do PS”. A tese é que o PS continua agarrado ao passado, em parte por causa do seu fundador, e por isso não se moderniza nem aceita alternativas a “um modelo obsoleto de economia e sociedade que está a condicionar o futuro do país”.
Eu perguntei ao Camilo Lourenço o que seria afinal a “modernização ideológica do PS”, mas ele ainda não respondeu. Fiquei genuinamente curioso. Não deve ser a história de “pôr o socialismo na gaveta”, pois, ao que parece, isso já foi feito. Deve portanto ser outra coisa. Será a defesa do liberalismo? Será o fim do Estado Social?
Obviamente, a simples ideia de que o PS precisa de se modernizar ideologicamente é em si mesma reveladora de uma agenda liberal (e ideológica) que não nos surpreende no Camilo, mesmo quando apreciamos a sua inteligência. Acontece que (pelo menos vista da esquerda…) a realidade não cola com esta análise. Hoje é mais lícito afirmar que a direita precisa de desconstruir o mito liberal do que dizer que a esquerda precisa de se modernizar. É bom não esquecer que esta crise começou precisamente no coração do novo liberalismo e por causa dele. É verdade que, por paradoxal que possa parecer, desse facto ainda não se tirou as devidas ilações no campo das ideias. Mas isso não muda o facto em si: a presente vertigem económica foi despoletada pela implosão de Wall Street e do seu liberalismo. E portanto resolver-se-á com menos liberalismo e não com mais. Apontar o liberalismo como o caminho a seguir é ignorar os últimos 10 anos.
Mas não é só. Não apenas o futuro apontado pelos liberais não serve, como o passado que eles pintam também não corresponde à realidade. E, desse ponto de vista, esta crónica de Camilo Lourenço também é emblemática. Diz ele que o nosso “modelo obsoleto de economia e de sociedade está a condicionar o futuro do país”, como se o Estado Social fosse o responsável pela nossa penúria. Até pode ser responsável pelo nosso défice, mas é uma simplificação redutora afirmar que estamos como estamos porque o Estado gasta “o que tem… e o que não tem”. O Estado não é uma mercearia e a contabilidade é um bocadinho mais complexa do que isso (o que é o dinheiro senão uma convenção? Já pensaram nisso?). E, além disso, Portugal é um actor muito pequenino no tabuleiro geo-estratégico em que a economia global também se manifesta. O nosso défice é apenas uma parte infinitesimal da diferença de crescimento anual de PIB entre os EUA e a China, por exemplo. E isso, por si só, explica melhor a situação em que estamos do que os desvarios do Estado português ou os custos do modelo social europeu.
É óbvio que as nossas sociedades estão a passar por transformações profundas a vários níveis. Mesmo que as coisas não estejam ligadas – e podem estar! – o que acontece em Pequim, no Rio de Janeiro, na Síria, em Atenas ou no Occupy Wall Street tem consequências em todo o mundo. E são, de momento, imprevisíveis. Por isso é que não faz sentido propor um discurso liberal com 10 anos! O Partido Socialista – qualquer partido socialista (ou qualquer partido, já agora!) – terá que se repensar a muitos níveis, incluindo provavelmente ao nível ideológico. Mas não no sentido em que se dizia que o tinha que fazer antes de tudo o que aconteceu nos últimos 10 anos. O mundo mudou muito entretanto e, se há certeza que eu tenho, é que vai mudar muito mais!
Hoje, uma discussão interessante desembocou - mais uma vez – nesta ideia: vamos ter que voltar atrás várias décadas! É uma ideia recorrentemente repetida, mas errada.
Entendamo-nos: não há retrocessos históricos! Não há um único período da história universal que seja claramente um retrocesso. Mesmo aquilo que nos pareça um retrocesso, não é na realidade um retrocesso; apenas “nos parece” um retrocesso. E a história também não se repete; apenas “nos parece” que se repete. Mas é da nossa percepção; não é da realidade.
O que há é vários futuros possíveis. E todos eles – todos! – são uma escolha. Mesmo aqueles que nos parecem impostos ou inevitáveis. Mesmo que seja por omissão.
Quando ouvirem falar de “crise do euro” ou “crise das dívidas soberanas” (e vão ouvir falar muito nas próxima horas!) mudem de canal! Quem falar de qualquer dessas coisas nos media demonstra que não sabe do que está a falar.
Esta crise é política antes de ser geopolítica, é geopolítica antes de ser económica e é económica antes de ser financeira.
A crise é política porque a integração europeia esbarrou na insuficiência das instituições europeias para a aprofundar. A ideia europeia estava correcta quando nasceu e continua correcta hoje. O mundo globalizado não “pede” instâncias de governação supra-nacionais. Ele “impõe” essas instâncias! Elas surgiram ao longo dos anos e vão continuar a surgir, independentemente de a União Europeia se conseguir ou não materializar como tal. Infelizmente, a Europa não soube aprofundar-se do ponto de vista democrático. Não soube oferecer ao europeus algo mais do que burocracia para contrapor às suas democracias nacionais. É óbvio que foram sempre os europeus – em referendos e eleições – que resistiram (e ainda hoje resistem) ao aprofundamento da Europa. Mas nunca saberemos qual seria o envolvimento das populações no projecto europeu se ele tivesse sido mais democrático. Mais “de baixo para cima” do que “de cima para baixo”.
Aliás, do ponto de vista político, quando se fala tantas vezes de uma possível Europa a duas velocidades, quase sempre esquecemos que essa Europa a duas velocidades já existe há muito tempo, materializada nos países do euro, por um lado, e nos que continuaram com as suas moedas nacionais, por outro lado. Do ponto de vista da integração política (já nem falo da integração económica e financeira) não faz qualquer sentido que haja países que usam uma moeda única e outros que não a usam. Esse foi, de certo modo, o primeiro pecado capital da integração política europeia. Foi o primeiro momento de insuficiência. Foi o precedente.
A crise é geopolítica porque a ascensão das novas potências (os BRIC, mas não só) se fez – como inevitavelmente se faria – à custa das velhas potências, sobretudo Europa e Estados Unidos. O fim da guerra fria e a expansão livre da globalização trouxe esta realidade absolutamente nova: as potências médias ascenderam ao primeiro plano do concerto das nações. Num quadro de desregulação política (fim dos blocos) e económica (que necessariamente se lhe segue) era de esperar que a China, a Índia, o Brasil, a Rússia, etc, países com recursos importantes, se modernizassem e crescessem do ponto de vista económico. E crescimento económico significa peso geopolítico. Quando temos países cuja riqueza cresce a dois dígitos por ano ao longo de mais de uma década e outros cujo produto cresce em média 1 ou 2% no mesmo período, inevitavelmente os primeiros ficam mais e importantes e os segundos tornam-se menos importantes. A Europa podia evitar isto? Não podia. Mas podia fazer duas coisas: crescer mais para defender a sua posição económica no mundo e tornar-se mais forte para conter com diplomacia política e económica o peso geopolítico dos novos actores. Foi isso que os EUA fizeram com a Índia, por exemplo. O falhanço da Europa em se integrar politicamente tornou-se mais fraca, tanto do do ponto de vista político como económico. Por isso é que o problema é político antes de ser geopolítico.
Mas a crise também é económica. O problema não está apenas no facto de as economias europeia e americana crescerem muito menos que as economias emergentes. Está também no facto de os mercados tradicionais dos países desenvolvidos encolherem enquanto os mercados dos países emergentes se expandem, tanto do ponto de vista demográfico como do ponto de vista de acesso ao consumo. Também isso era inevitável. Mas uma Europa com mais peso geopolítico teria conseguido impor mais restrições à expansão dos países emergentes e sobretudo teria imposto um acesso mais fácil aos seus mercados emergentes. Por isso é que a crise é geopolítica antes de ser económica.
É claro que a crise também é financeira. Mas é muitas outras coisas antes de ser financeira. E é-o devido a essas outras coisas. Os “mercados” necessariamente ilustram em números aquilo que os políticos decidem nos gabinetes e as populações escolhem nas eleições. Os políticos e as populações “escolheram” uma Europa politicamente fraca e economicamente débil; os mercados limitam-se a expressar esse “desejo” em números, com o rating das dívidas e o consequente aumentos dos juros. Perante países em dificuldades, os “mercados” têm a mesma candura que um predador perante o antílope!
É aqui – e só aqui – que a crise se torna a “crise do euro” ou “das dívidas soberanas”. Mas torna-se isso em consequência do fraco crescimento económico, por causa da emergência de novas potências mundiais e devido ao beco sem saída em que se meteu a construção política europeia. Falar da “crise do euro” ou “das dívidas soberanas” e ignorar tudo o que está para trás é ignorar o essencial. E, na realidade, duvido muito que a resolução da “crise do euro” ou “das dívidas soberanas” resolva realmente o problema. Ou, melhor dito, os problemas.
Pode até acontecer que os dirigentes europeus saiam da cimeira de amanhã com decisões importantes para defender a sua moeda e proteger as dívidas dos seus países, talvez a criação de um ministério das finanças federal, talvez a emissão de dívida ou outras medidas que se têm falado. Mas estarão mal se essa for a sua única ambição. Porque, mesmo que essas medidas resultem – o que em si já é muito duvidoso – não tocarão nas causas profundas da decadência europeia. O problema seria melhor resolvido ao contrário, começando pelas causas e não pelas consequências!
Aproveitando que há amanhã uma cimeira europeia, deixo aqui a minha sugestão para a solução da crise na Europa.
Os chefes de estado e de governo reúnem-se e, no final, o presidente da comissão europeia ou o presidente da Europa, com os chefes de estado e de governo atrás, comunicam as seguintes decisões:
1. Vai haver eleições europeias no dia 31 de Janeiro para eleição de uma assembleia constituinte. Essa assembleia terá como funções únicas redigir a constituição da Europa, com duas câmaras, uma de representação política, outra de representação regional, e empossar um governo de transição;
2. Os países que não participarem nesta eleição não farão parte da Europa unida;
3. O inglês será a língua oficial da Europa, as restantes línguas nacionais serão a 2ª língua de cada região;
4. Para proteger o euro, que será a única moeda da Europa, ficam proibidos todos os fluxos financeiros para fora da zona euro até à posse do primeiro governo eleito da Europa.
É muito simples, não?
(publicado originalmente no Facebook)
Manuel Falcão, através do twitter, alertou-me para esta frase de Adriano Moreira:
“Parece ter-se trocado o valor das coisas pelo preço das coisas”
A frase está aqui, mas a tese que a sustenta está, entre outros sítios, neste artigo de opinião publicado no DN com o título “O relativismo e a decadência”.
Duas observações acessórias antes de chegar ao essencial: 1) A lucidez do professor Adriano Moreira (posso – e devo! – tratá-lo assim porque foi meu professor) é espantosa e põe-me sempre a pensar que, ao contrário do que acontecia nas sociedades tradicionais, damos aos nossos anciãos menos atenção do que devíamos; 2) Adriano Moreira é um conservador de direita de corpo inteiro. Não existem muitos conservadores de direita em Portugal (provavelmente menos que liberais de direita), mas Adriano Moreira é-o com uma verticalidade e uma coerência de princípios e valores que muitas vezes me recorda – imagine-se! – Álvaro Cunhal. Estão (estavam) nos antípodas em termos das ideias que defendem, mas são (eram) parecidos na coerência, verticalidade e atá generosidade com que o fazem. Até fisicamente são parecidos!
Mas o essencial é esta ideia de que, nas nossas sociedades, o preço das coisas está a tomar o lugar do valor das coisas. E que muitas das nossas perplexidades resultam desse facto. É uma ideia brilhante porque, se pensarmos bem, vale para muitos dos fenómenos que aparentemente não conseguimos explicar: desde a compra e venda da dignidade individual nos reality shows televisivos até à cedência de soberania nacional em troco de “tranches” de crédito, passando pela ocupação do espaço público por interessas privados, entre muitas outras coisas. O último destes fenómenos é provavelmente criticado pela esquerda, o segundo obviamente pela direita conservadora e o primeiro por ambas, por razões diferentes. E, no entanto, estamos provavelmente perante causas comuns. Os jovens que expõem a sua intimidade e vendem a sua dignidade a troco de dinheiro (ou de fama seguida de dinheiro, o que vai dar ao mesmo) nos reality shows televisivos, acabaram de dar um preço a uma coisa que dantes tinha valor e não tinha preço. A maneira como aceitamos que nos dêem crédito a troco de mandarem nas nossas decisões políticas não é mais do que uma forma de atribuir um preço a algo que nunca antes tínhamos ousado sequer quantificar: a soberania nacional. Dantes tinha um valor, agora tem um preço. Por fim, quando vemos uma praça, um jardim ou um equipamento social comum – um parque de diversões, por exemplo (sim, estou a pensar na Feira Popular) - definitiva ou temporariamente ocupado por um produto ou empresa privada, isso significa que uma parte do nosso espaço comum de convivência social foi “vendido”. Ou seja, tinha um valor para todos, mas passou a ter um preço para as entidades envolvidas na transacção. Basta olharmos para as cidades com esta perspectiva nos olhos para percebermos o quanto temos transferido espaço público para o domínio privado. Todo o espaço público que tem valor acaba mais cedo ou mais tarde por ter um preço. Exemplo, que – repito – ilustra apenas uma tendência que poderia ser ilustrada por muitos outros.
Esta é a visão conservadora do problema. Conservadora de direita, de esquerda, ou de direita e de esquerda, consoante cada uma dos exemplos. Mas há outra visão possível, menos “política”, menos próxima da realidade, mas mais capaz – parece-me – de a explicar integralmente.
Essa tese sobre “o valor das coisas” versus “o preço das coisas” parte de uma distinção básica entre “valor” e “preço”: tem valor aquilo que não é mensurável e tem um preço aquilo que é mensurável. Como se mede o preço de um bem comum primário, como um quilo de batatas, por exemplo? Mede-se, obviamente, com uma balança, carregando batatas até chegar ao quilo, e cobrando pouco mais de um euro, o “preço” de um quilo de batatas. Um preço de um bem secundário- um televisor por exemplo – é obtido somando as matérias-primas empregues, a depreciação das máquinas que o produzem e o tempo gasto pelos operários. Um serviço, por fim, tem um preço calculado em função de pouco mais do que o tempo empregue pelo “servidor” para prestar o serviço.
Nos exemplos anteriores, é muito provável que haja muitos jovens na casa dos 20 anos que acham intolerável a exposição e mercantilização da dignidade nos reality shows televisivos. Para eles a dignidade tem valor, mas não tem preço. No entanto, já existe um preço de referência para dignidade. Se os produtores desse tipo de programas tivessem a coragem de falar abertamente sobre eles saberíamos que resulta – provavelmente – do cruzamento entre o mais recente preço praticado para a mesma transacção (o mais recente reality show) e as audiências, medidas em share, previsivelmente conseguidas com esse “produto”. Os jovens aludidos no início do parágrafo podem continuar a recusar vender a sua dignidade, seja qual for o preço. Mas sabem – não poderão não saber – que no dia em que decidirem vender haverá um preço para isso. Aliás, há uma nota curiosa a destacar sobre este assunto em particular: quanto mais gente estiver disposta a vender a sua dignidade, menor é o preço unitário de cada uma. Curioso, não é?
Também há muitas pessoas – o professor Adriano Moreira, por exemplo- que acham intolerável que se venda a Pátria por 70 mil milhões de euros. Para elas, a independência e soberania nacional não têm preço. Mas têm! E esse preço expressa-se num conjunto complexo de indicadores financeiros e económicos (PIB, dívida externa, dívida pública, etc), mediados pelos chamados “mercados” (especialistas na “mensurabilidade” dos indicadores economico-financeiros) dando origem a conceitos estranhos como “dívida soberana” ou “default”. É estranho ouvir dizer que a China comprou X% da nossa dívida soberana porque nos parece que isso significa que comprou X% de Portugal. E o facto é que comprou mesmo! Por isso é que nos parece estranho!
A Feira Popular, por exemplo, era um conjunto de equipamentos de lazer disponíveis ao público localizados numa zona geográfica da cidade onde o metro quadrado de edificação comercial tem um alto preço médio. Para os habitantes da cidade, a existência daquele parque tinha certamente algum “valor” (nota: não estou a falar da relação individual de cada utilizador com cada divertimento do parque; essa é uma relação comercial individual que tinha um preço. Estou falar do espaço em si). Mas esse valor não era facilmente mensurável. Era tão mensurável como o valor atribuído à existência da um jardim. É coisa que tem valor, mas não é coisa que tenha preço. É priceless! Mas, para os edificadores imobiliários privados, tem certamente um preço muito mensurável. E por isso é que, como em tantos outros lugares da cidade, o espaço público com valor acabou por dar lugar a empreendimentos privados com preço.
Ou seja: de um lado temos sempre um valor não mensurável e do outro um preço bem mensurável. Talvez a correspondência não seja totalmente exacta, mas, à primeira vista, até se pode dizer que todo o valor que puder ser medido se transforma num preço.
O que nos traz – finalmente! – ao ponto essencial da minha tese: a quantificação do valor das coisas é uma consequência fatal do manto de inteligência com que o ser humano cobre toda a realidade que o circunda. Ou seja, não é uma escolha; é uma fatalidade determinística. O ser humano usa a sua inteligência sempre e a todo o tempo. E ao fazê-lo torna a realidade que o rodeia coerente com a sua inteligência. O que significa quantificar tudo o que puder e quiser quantificar. Incluindo coisas – “valores”, por exemplo – que dantes não eram quantificadas. A diferença entre o passado e o presente, portanto, não é que dantes era tudo bom e agora é tudo mau. A diferença é que há coisas que dantes não conseguíamos medir e agora – devido ao avanço do conhecimento acumulado, da ciência e das tecnologias – já conseguimos. Aparentemente, a dignidade, a soberania e o espaço público (e repito que os exemplos poderiam ser muitos outros…) são três dessas coisas.
Seria concebível um programa como a “Casa dos Segredos” se não houvesse aparelhos para medir as audiências? Ser-nos-ia possível aceitar que um qualquer grupo de funcionários estrangeiros nos impusesse um programa de austeridade se não houvesse o complexo sistema de contabilidade pública que hoje existe? Seria possível tornar o espaço público em espaço privado se não houvesse um mercado imobiliário a funcionar? Quantificação é matemática. A quantificação faz parte da inteligência e hoje quantificamos – cobrimos de inteligência – muitas coisas que antes não quantificávamos. Isso muitas vezes parece-nos um problema e torna-nos a todos conservadores, sejamos de direita ou de esquerda. É aliás muito significativo que o fenómeno afecte igualmente a esquerda e a direita. Isso só prova que ele é verdadeiro.
Temos tendência a resistir ao futuro. Mas, quando olhamos para o passado, vemos que o futuro nunca nos foi prejudicial. A crescente interdependência económica e financeira entre muitos países diferentes – que tem tudo a ver com a chamada “crise das dívidas soberanas” por exemplo – é apenas mais uma manifestação da globalização, ou seja, o movimento de integração dos fluxos de mercadorias, de trabalho, de informação e de dinheiro a nível mundial, um movimento que – naturalmente – é todo ele alimentado pela ciência, a acumulação de conhecimentos e a tecnologia. A resposta não é – não pode ser! – resistir. A resposta só pode ser encontrar mecanismos de organização social e colectiva que sejam transnacionais ou internacionais. A União Europeia é isso.
Jeff Jarvis, um dos melhores jornalistas que eu conheço a acompanhar a questão dos novos media, publicou recentemente um livro chamado “Public Parts” no qual analisa os problemas da privacidade no mundo moderno e que surge na sequência da extensa descrição que Jarvis foi fazendo – por vezes com detalhes mesmo muito “privados” – da sua própria experiência de um cancro do cólon. Uma das teses do livro é que precisamos de novos conceitos de privacidade. E – digo eu – precisamos de olhar também para outros conceitos que – presunçosos – achávamos que eram imutáveis, como o de “dignidade”. Nenhum conceito é imutável e portanto, por definição, nenhum valor o é também. Aliás, basta olharmos à nossa volta para o percebermos. Há 100 anos seria impensável – para os próprios! – que um casal de namorados se beijasse em público. Hoje estamos no ponto de aceitar que sejam do mesmo sexo!
Por fim, o problema do espaço público face ao espaço privado. Basta olhar para trás para perceber que desde as primeiras terras atribuídas pelos reis aos senhores feudais vimos percorrendo um caminho sempre no mesmo sentido. O espaço público vai ganhando preço e tornando-se privado. Há duas visões possíveis para conjugar esse movimento com o interesse público: salvaguardar mecanismos de utilização pública de bens privados; ou – que me parece mais promissor – encontrar outras formas mais evoluídas de medir o valor das coisas, que venham a respeitar a ideia – que nos parece tão clara – de que o interesse público tem tanto ou mais “valor” que o interesse privado. O mundo dá muitas voltas…
Ou seja, a primeira tentação que temos é sempre a de reagirmos de forma conservadora a esta oposição dinâmica entre o preço das coisas e o valor das coisas. Mas essa pode não ser a reacção mais correcta. Temos que nos pôr no ponto correcto da escala do tempo – o nosso minúsculo pontinho – e percebermos que se há muito tempo para trás, há ainda mais para frente. E que se muita coisa mudou – e sempre para melhor – atrás de nós, ainda mais coisas haverão de mudar para a frente de nós. E tudo leva a crer que para melhor!
Eis o que vai acontecer:
NOTA: Este é um exercício de pura adivinhação política usando o conhecido método de “dedo no ar”.